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Naquela noite, coincidiu de eu visitar meu Pai em Maceió, na nossa casa à Avenida Rotary. Eu desejava levar-lhe uma cafeteira de presente junto de minha esposa Mayra e de minha filha Maria Julia. Não tenho dúvidas de que a força do sangue, em transmissão de pensamento, num divino sussurro, me levara até ali — e foi justamente àquele instante que recebemos o telefonema de que minha Mãe Nanci fora ao encontro do Deus em Quem tanto acreditava. Nos abraçamos e fomos ao hospital.
Pouco dormiríamos. Eu mesmo, adormeci por uma hora apenas, das 3 às 4 da madrugada, e, logo ao nascer do dia, conduzi ao volante meu Pai de Maceió a Viçosa e daqui para Igreja Nova. Comoveu-me a mensagem do Padre Fernando Bezerra (obrigado, Padre). E durante essa passagem por Viçosa, sob os aplausos das pessoas que a queriam bem (e quem não a queria?!)… durante essa passagem por Viçosa, aqui de frente a esta Igreja de Nossa Senhora das Dores, não mais pude conter as lágrimas: afinal, mesmo não sendo a sua terra de nascimento, Viçosa durante mais de 40 anos a acolhera como profissional médica, esposa de um casamento de amor e dedicadíssima mãe de família. (Agradeço aqui ao verdadeiro »exército de orações« por seu restabelecimento, nas palavras de uma amiga de infância e colega de escola).
Mesmo discreta e um tanto tímida, era de vê-la levemente agitada por essas ruas de paralelepípedos — a irradiar a sua luz. Era uma mulher que conjugava em si, como raramente se vê, humildade e elegância. Não falo da elegância no vestir somente, mas de distinção, de postura ética, de espontaneidade, do porte de mulher que se dá ao respeito e que viera ao mundo para marcá-lo com o timbre de sua personalidade e dos seus préstimos.
De todos nós, fui o único a não contemplar-lhe a face pela vez derradeira: não que me faltasse coragem para tal atitude — é que preferi, como prefiro agora, silenciosamente, guardar o seu sorriso franco e doce, um sorriso de rosto inteiro, e detalhes das lembranças de um convívio de quase 39 anos, na condição de filho mais velho.
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Quantas afinidades tivéramos nós! Mãe e filho: dois confidentes. Sucos de frutas, mungunzá, pudim, doces de figo, leite, de goiaba em calda, de mamão… e outras tantas sobremesas; a batata doce, o chá, até papas de aveia e cremogena; a pouca crença na política; o gosto musical pela bossa nova, pela MPB, pelo Chico Buarque, pela Maria Bethânia, pela poesia de Manuel Bandeira e pelos versos de Casimiro de Abreu e Olavo Bilac, a paixão pela leitura — esta, herança do seu avô Sisino Borges, um homem que, mesmo sem estudos, formou sortida biblioteca em sua casa, no Baixo São Francisco.
Sentirei falta, Mãe, dos seus cuidados extremos, exagerados. A verdade é que, perdendo minha avó Cândida quase ao tempo de bebê, procurou ela compensar a ausência da figura materna através de um dengo, de um carinho e de uma preocupação imensa para com os seus quatro filhos e a família. Todavia, não apenas isso: a pediatria e a clínica geral foram também a sua forma de expandir as asas de pássaro do lar para a rua, uma maneira de compartilhar o calor do ninho para a comunidade: Chã Preta, Quebrangulo, Igreja Nova, Viçosa… e por aí vai… foram algumas das cidades que, em suas histórias, registraram a presença social da médica humanista Nanci Brito Borges Vasconcelos.
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Por esses dias estive a vasculhar os meus papéis velhos — verdadeiros tesouros ante meus olhos. Porque além das recordações sentimentais de filho, guardo poemas seus, cartas, fotos, objetos… e mensagens como esta, de um bilhetinho deixado pra mim já eu homem feito, pouco antes de casar-me: »Marquinhos, seu almoço está pronto, esquente e coma; não pule as refeições. Beijos, Mamãe«.
Curiosamente, quando recebi o impacto da ciência de sua passagem aos céus naquele domingo (ah, os domingos!) e quando chegamos, na manhã seguinte, à sua terra — Igreja Nova —, procurei conter as lágrimas. Precisava ser forte como filho mais velho de meu Pai. Precisava ser forte como irmão mais velho dentre nós quatro. Precisava, enfim, ser forte como familiar, como esposo e, principalmente, como pai da minha Maria Julia — sem fraquejos —, pois ela tem todo um futuro pela frente e precisará de mim.
No entanto, minha Mãe, longe de mim ser frio e insensível o seu primogênito, ora vejo que as lições da senhora germinaram: homem de fé, sinto-me equilibrado, seguro — e a minha força cresce pela esperança de que, cumprida a nossa missão cá na Terra, nós nos reencontraremos.
Assim sendo, seremos fortes em seu nome e por seu desejo de nossa alegria enquanto matéria.
Obrigado ao Alto pela recuperação de meu Pai e de minha irmã Nancy.
Que Deus nos abençoe a todos e nos dê saúde e realização!
Te amo, Mãe, obrigado por tudo, e até um dia!
Pinho — Marquinho(s)
Maceió, início da tarde de 2 de setembro, 2021.
* Mensagem lida na Missa de Sétimo Dia da médica Nanci Brito Borges Vasconcelos, na Igreja Nossa Senhora das Dores, em Viçosa, Alagoas, à tarde do dia 4, mês de setembro, ano 2021.